Quase o amor, quase o triunfo e a chama
Comentários sobre o filme Companheiros, quase uma história de amor

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão…
Mas na minh’alma tudo se derrama…
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo … e tudo errou…
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim…
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou…

Poema Quase, de Mario de Sá Carneiro

No poema Quase, de Mario de Sá Carneiro, o eu lírico tece comentários lamentando sua vida: o tanto que poderia acontecer, mas não aconteceu. A agonia de viver experiências que poderiam ter sido tanto, se pelo menos tivessem a ajuda do destino. Aquele sonho, aquele desejo, que quase foi vivido, mas o destino não permitiu.

Recentemente, assisti ao filme Companheiros, quase uma história de amor, dirigido por Peter Chan, que fiquei com muita vontade de comentar por aqui. Acho que, pelo próprio nome, já é possível enxergar a semelhança temática com o poema que começa esse texto.

Esse texto contém spoilers. Não irei contar a história completa do filme, apenas comentar as partes que mais me chamaram a atenção, portanto, recomendo que vocês vejam o filme para ter a experiência completa.

O filme aborda a história de duas pessoas que migraram da China continental para Hong Kong, na promessa de que lá seu trabalho duro seria compensado e eles conseguiriam enriquecer. O protagonista do filme, Li Xiao-Jun (Leon Lai) vai para lá com o objetivo de economizar dinheiro e levar sua namorada para morar com ele em Hong Kong. Na cidade, ele encontra Li Qiao (Maggie Cheung), outra chinesa que também foi para a cidade para trabalhar e enriquecer. Eles rapidamente viram amigos, principalmente devido a solidão daquela cidade, já que Xiao-Jun não fala cantonês, a língua falada em Hong Kong.

O longa aparenta ser só mais um melodrama bobo, história batida do amor impossível, mas ele sabe trabalhar muito bem suas ideias, indo muito além do amor dos dois. A sua primeira hora representa esse sonho, o que quase poderia ter acontecido. É quando os protagonistas se aproximam, vivem um amor aparentemente perfeito, porém proibido. Uma das cenas que mais gosto do filme, é a que marca a aproximação dos dois. Qiao vai sair da casa de Xiao-Jun, porém está muito frio e ele começa a por casacos nela. Depois de três casacos, eles se aproximam cada vez mais um do outro. É quase como se o casaco fosse uma barreira do amor dos dois. Daí que Xiao-Jun tira o casaco de Qiao e lhe dá o primeiro beijo. Essa barreira, simbolicamente representada pela roupa, é quebrada e daí começa o amor dos dois:

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Junto com a relação aparentemente perfeita, os dois começam a economizar mais dinheiro, investem em ações, e vão melhorando de vida em Hong Kong, tal qual era o sonho de chineses que migravam para Hong Kong. Uma espécie de sonho americano, mas transplantado para a realidade chinesa.

No final da primeira hora, porém, Qiao se afunda em dívidas o que leva a ela trabalhar como massagista, que, para ela, é um emprego humilhante. Nisso, a relação entre Xiao-Jun e ela fica cada vez mais distante. Até que eles se separam totalmente. Eu gosto de que os aspectos da relação são utilizados para fazer comentários sobre a realidade daquela época: assim como esse amor era só um sonho, também era um sonho enriquecer e mudar de vida no capitalismo. Foi algo que quase aconteceu, mas não foi possível.

São passados alguns anos, e Xiao-Jun é promovido e economiza dinheiro o suficiente para trazer sua namorada da China continental para Hong Kong. Eles se casam em Hong Kong, e Xiao-Jun convida Qiao para seu casamento. Notamos que Qiao agora é uma empresária de sucesso, o que aconteceu porque ela se casou com um mafioso que ela fazia massagens no seu antigo emprego. Vemos que, embora já tenham passados anos, o amor entre os dois ainda existe. Sempre existe essa faísca.

E é aí que vem uma das minhas outras cenas favoritas do filme. Qiao e Xiao-Jun estão em um carro, quando eles encontram uma artista chinesa que ambos gostavam de escutar. Ela começa a cantar uma música sobre um antigo amor, e Qiao fica refletindo. Ela pede para para Xiao-Jun ficar lá pois ela precisa resolver um problema. É aí que ela fica no carro, e bate a cabeça na buzina, o que chama a atenção de Xiao-Jun. É como se, o inconsciente de Qiao ainda clamasse por Xiao-Jun. Há um plano e contraplano, em que os dois se olham, e depois uma composição com o reflexo de Qiao no retrovisor lateral do carro e Xiao-Jun no fundo. Uma das cenas mais arrepiantes do filme:

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Gosto muito desse plano pois mostra como aquele amor não passou. Ele ainda existe, mesmo que os dois neguem. Os dois juntos, os seus olhares intensos, o antigo amor dela no fundo borrado, como uma memória quase apagada, enquanto ela está quase chorando. Esse plano resume propriamente o filme: aquele amor que quase aconteceu, aquele sonho que quase aconteceu, que faltou tão pouco: quase o amor, quase o triunfo e a chama… mas não aconteceu. Aquela memória que nos atormentará para sempre, que não conseguimos esquecer, que vira um borrão na nossa mente, nos lembrando do nosso passado.

Xiao-Jun conta do caso para sua namorada, agora esposa, e eles se separam. Porém, os desencontros não levam a Xiao-Jun e Qiao a ficarem juntos. Com isso, o filme inicia um novo arco: Xiao-Jun migra para Nova York para trabalhar em um restaurante, e Qiao vira uma imigrante ilegal pois o seu marido mafioso teve que fugir da China. Aqui, o filme recomeça com uma espécie de recontagem da primeira hora do filme. Agora, em vez do sonho de enriquecer em Hong Kong, o sonho é enriquecer em Nova York, o sonho americano propriamente dito.

Novamente, o filme usa o relacionamento dos dois para tecer comentários da realidade. Ao chegar à América, vemos que o sonho americano não é tão bom assim. Até uma chinesa de Nova York comenta que “muitos do Chineses se arrependem de ter migrado para os EUA”, e que agora a China estava indo muito melhor economicamente. Curiosamente, o que une os dois de novo é a sua própria terra. No final do filme, uma cantora famosa chinesa falece, e é na notícia de sua morte passando na TV que os dois finalmente se encontram:

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Esse filme passa muitas sensações a partir de seu visual. Como eu quis mostrar aqui, a construção de planos, a simplicidade das relações e da história são usados para nos fazer experienciar grandes emoções. Sim, é um filme emocionante, e, embora eu tenha contado alguns detalhes da história, assisti-lo ainda é uma experiência única impossível de ser descrita por um texto.


Última modificação em 2025-08-22