Introdução
Você realmente sabe o que são os números naturais? Muito de nossas noções de números e operações sobre eles vem de uma noção intuitiva, geralmente baseado em objetos reais e em contagem: se eu tenho uma maçã e pego outra maçã, agora tenho duas maçãs. Ou seja, as pessoas assumem que números naturais são baseados em nossa capacidade de contar. Mas, matematicamente, isso não é suficiente para definir números naturais e suas propriedades.
Por exemplo, você sabe por que dois mais dois é quatro? Ou por que a adição é comutativa (a ordem dos fatores não altera o resultado)? Será se isso são noções primitivas, ou fatos derivados de outros fatos mais primitivos? A formalização dos números naturais permite que possamos entender melhor essas propriedades, e derivá-las a partir de premissas mais primitivas.
Na maior parte do tempo da história da humanidade, o conceito de número sempre foi entendido a partir de sua noção intuitiva e, somente no século XIX, que houve uma tentativa de formalizá-los, utilizando lógica e teoria dos conjuntos. Neste post, quero comentar um pouco sobre os axiomas de Peano, que foi uma tentativa de formalizar as nossas noções intuitivas sobre números naturais.
Formalizando os números naturais
Os axiomas de Peano
Axiomas são premissas, ou seja, afirmações que assumimos que são verdadeiras, sem necessidade de provas formais, e que são utilizadas para derivar outros fatos. A partir de agora, trabalharemos sobre os axiomas formulados pelo matemático Giuseppe Peano, que são premissas utilizadas para formalizar noções primitivas dos números naturais e também derivar suas propriedades.
Para cada axioma, eu o escreverei em linguagem humana e também utilizando a linguagem da lógica matemática. Caso você não saiba lógica, não há problema, tentarei explicar cada um dos axiomas. O primeiro axioma é:
- 0 é um número natural. $$0 \in \mathbb{N}$$
Primeiro, definimos que o elemento 0 é um número natural. Por agora, ignore todas as concepções anteriores que você tinha do número 0: ele é apenas um elemento do conjunto dos números naturais, sem nenhuma particularidade.
- Seja a função S tal que S(x) é de chamado sucessor de x. Se x é natural, então S(x) também é natural. $$ x \in \mathbb{N} \Rightarrow S(x) \in \mathbb{N}$$
Depois, definimos que todo elemento pertencente ao conjunto dos números naturais tem um sucessor. A função $S$ formaliza o nosso conceito intuitivo de que cada número natural é sucedido por outro número natural.
- Para todo número natural x, S(x) = 0 é falso. $$ \forall x \in \mathbb{N}, S(x) \neq 0 $$
Isso garante que 0 é o “primeiro elemento” da contagem, ou seja, de que não há nenhum elemento cujo seu sucessor é 0. Novamente, formalizando a noção intuitiva dos números naturais, em que 0 é o primeiro elemento do conjunto.
- Para todos os números naturais m e n, se S(m) = S(n), então m = n. $$ \forall m, n \in \mathbb{N}(S(m) = S(n) \Rightarrow m = n) $$
Essa condição garante que cada número tem um predecessor único. Ou seja, não é possível que 3 seja o sucessor de 2 e de 1 ao mesmo tempo, pois se $S(2) = S(1)$ então $2 = 1$, o que seria um absurdo.
- Seja K um subconjunto dos naturais. Se 0 pertence ao conjunto K e se para todo número natural x, x pertencer ao conjunto K implica que S(x) também pertence ao conjunto K, então K contém todos os números naturais. $$ \forall K \subseteq \mathbb {N} : (0 \in K \wedge \forall x \in \mathbb{N} (x \in K \Rightarrow S(x) \in K)) \Rightarrow K = \mathbb{N} $$
Este último axioma é chamado de o axioma da indução. Ele é utilizado para limitar os números naturais a todos os números gerados a partir de 0 e da função $S$. Por exemplo, vamos supor que não definimos o axioma da indução. Nós poderíamos ter dois números naturais, $a$ e $b$ de forma que $S(a) = b$ e $S(b) = a$. Assim, o conjunto dos números naturais seria definido pelos elementos $ \mathbb{N} = \{ a, b, 0, S(0), S(S(0)), … \} $, e isso respeitaria todos os axiomas anteriores. Mas, você deve concordar que, na nossa noção intuitiva de números naturais, todos os elementos do conjunto podem ser gerados a partir de 0 e da função $S$, ou seja, seu sucessor.
Portanto, o teorema da indução garante que se 0 estiver num conjunto $K$ e $x$ estar conjunto $K$ implica que $S(x)$ também está conjunto $K$, o conjunto $K$ é o conjunto dos números naturais.
Algumas deduções a partir dos axiomas
Todo número natural é diferente de seu sucessor
Intuitivamente, sabemos que um número é sempre diferente do seu sucessor. Será se é possível provar isso a partir dos próprios axiomas? Sim! Primeiramente, definimos um conjunto A da seguinte forma:
$$ A = \{ x \in \mathbb{N} : x \neq S(x) \} $$
Essa notação matemática quer dizer que o conjunto A é um conjunto composto por elementos que são números naturais e que são diferentes de seus sucessores. Para provar que todo número natural é diferente de seu sucessor, devemos mostrar que o conjunto $A$ é igual ao conjunto dos números naturais.
Para demonstrar isso, vamos utilizar o quinto axioma, o axioma da indução. Para aplicar este axioma, seguiremos os seguintes passos:
- Provaremos que 0 pertence ao conjunto $A$.
- Assumiremos que um número $k$ qualquer pertence ao conjunto $A$, ou seja, $k$ é diferente de seu sucessor. Chamamos essa etapa de hipótese de indução.
- Mostraremos que se k pertence ao conjunto $A$, então $S(k)$ também pertence ao conjunto $A$.
- Ao final, concluiremos que o conjunto $A$ é o mesmo conjunto que os números naturais, ou seja, que todo número natural é diferente de seu sucessor.
Primeiro, sabemos que 0 pertence ao conjunto $A$, pois o terceiro axioma garante que $S(x)$ é diferente de 0 para qualquer $x$ natural, ou seja, $S(0) \neq 0$.
Agora, assumiremos que $k$ pertence ao conjunto $A$. Portanto, $k$ é diferente de seu sucessor: $k \neq S(k)$.
Devemos demonstrar que $S(k)$ pertence ao conjunto $A$. Vamos supor que $S(k)$ não pertence ao conjunto $A$, ou seja, $S(k) = S(S(k))$. Sabemos pelo quarto axioma que se $S(a) = S(b)$ então $a = b$. Logo, se $S(k) = S(S(k))$, então $k = S(k)$. Porém, este fato contradiz a hipótese de indução, que afirma que $k \neq S(k)$, o que é um absurdo. Portanto, devido a essa contradição, isso significa que $S(k)$ deve ser diferente de seu sucessor, ou seja, $S(k) \neq S(S(k))$ e $S(k)$ pertence a conjunto $A$.
Como 0 pertence ao conjunto $A$ e $k$ pertencer ao conjunto $A$ implica que $S(k)$ também pertence ao conjunto $A$, pelo axioma da indução, podemos afirmar que o conjunto $A$ é o próprio conjunto dos números naturais. Logo, todo número natural é diferente de seu sucessor.
Definindo as operações aritméticas
Definindo a adição
Outra coisa que nos vem naturalmente é a noção de adicionar dois números: dois mais dois é quatro porque sim, porque duas bananas mais duas bananas dão quatro bananas. Podemos definir essa operação a partir da função $S$ de sucessor e dos axiomas definidos anteriormente.
Recursivamente, a operação de adição é definida como:
$$ x + 0 = x \\ x + S(y) = S(x + y) $$
Notamos que 0 é o elemento neutro da adição, ou seja, ao somar um número com 0, o resultado é o próprio número. Vamos fazer um exemplo, “demonstrando” a partir desta definição porque $1 + 2 = 3$. Definimos os números 1, 2 e 3 como:
$$ 1 = S(0) \\ 2 = S(1) \Rightarrow 2 = S(S(0)) \\ 3 = S(2) \Rightarrow 3 = S(S(S(0))) \\ $$
Agora, vamos fazer 1 + 2:
$$ 1 + 2 = 1 + S(1) \\ 1 + 2 = S(1 + 1) \\ 1 + 2 = S(1 + S(0)) \\ 1 + 2 = S(S(1 + 0)) \\ 1 + 2 = S(S(1)) \\ 1 + 2 = S(2) \\ 1 + 2 = 3 $$
Provando a validade da comutativa da adição
Provando que 0 + x = x
A comutativa é uma propriedade da adição que diz que a ordem dos elementos numa soma não altera o resultado. Essa propriedade não é uma noção primitiva ou um axioma, podemos provar sua validade através da definição de adição. Primeiro, vamos provar que $0 + x = x$. Iremos utilizar, novamente, do axioma da indução. Seja o conjunto $A$:
$$ A = \{ x \in \mathbb{N} : 0 + x = x \} $$
- Sabemos que 0 pertence ao conjunto $A$, pois 0 + 0 = 0 (definição de adição).
- Hipótese de indução: Vamos supor que para um $x=k$ qualquer, é válido: $$ 0 + k = k $$
- Se $k$ pertence ao conjunto $A$, vamos verificar se $S(k)$ também pertence. Note que: $$ 0 + S(k) = S(0 + k) = S(k) $$
- Portanto, $S(k)$ pertence ao conjunto $A$. Logo, $0 + x = x$ é válido para todo natural $x$.
Provando que S(x) + y = S(x + y)
Agora, vamos provar que $ S(x) + y = S(x + y) $ para todo natural $x$ e $y$. Seja o conjunto $B$:
$$ B = \{ y \in \mathbb{N} : \forall x \in \mathbb{N} (S(x) + y = S(x + y)) \} $$
Este é um conjunto formato por naturais $y$ de forma que, para todo natural $x$, $ S(x) + y = S(x + y) $. Aplicando o axioma da indução:
- Sabemos que 0 pertence ao conjunto $B$, pois $ S(x) + 0 = S(x) = S(x + 0) $.
- Hipótese de indução: Vamos supor que para um $y=k$ qualquer, é válido: $$ S(x) + k = S(x + k) $$
- Se $k$ pertence ao conjunto $B$, vamos verificar se $S(k)$ também pertence. Note que: $$ S(x) + S(k) = S(S(x) + k) = S(S(x + k)) = S(x + S(k)) $$
- Portanto, $S(k)$ pertence ao conjunto $B$. Logo, $S(x) + y = S(x + y)$ é válido para todo natural $x$ e $y$.
Provando que x + y = y + x
Com os dois resultados anteriores, finalmente podemos provar que $x + y = y + x$. Seja o conjunto $C$:
$$ C = \{ y \in \mathbb{N} : \forall x \in \mathbb{N} (x + y = y + x)\} $$
Este é o conjunto formado por naturais $y$ de forma que, para todo natural $x$, $ x + y = y + x $. Aplicando o axioma da indução:
- Sabemos que 0 pertence ao conjunto $C$, pois $ x + 0 = 0 + x $.
- Hipótese de indução: Vamos supor que para um $y=k$ qualquer, é válido $$ x + k = k + x $$
- Se $k$ pertence ao conjunto $C$, vamos verificar se $S(k)$ também pertence. Note que: $$ x + S(k) = S(x + k) = S(k + x) = S(k) + x $$
- Portanto, $S(k)$ pertence ao conjunto $C$. Logo, $x + y = y + x$ é válido para todo natural $x$ e $y$.
Definindo a multiplicação
A multiplicação também pode ser definida a partir da função de sucessor $S$ e dos axiomas. Vamos defini-la recursivamente da seguinte forma:
$$ x \cdot 0 = 0 \\ x \cdot S(y) = x + x \cdot y $$
Para mostrar como a definição funciona, vamos fazer a conta $ 3 \cdot 2 $:
$$ 3 \cdot 2 = 3 \cdot S(1) \\ 3 \cdot 2 = 3 + 3 \cdot 1 \\ 3 \cdot 2 = 3 + 3 \cdot S(0) \\ 3 \cdot 2 = 3 + 3 + 3 \cdot 0 \\ 3 \cdot 2 = 3 + 3 + 0 \\ 3 \cdot 2 = 6 $$
Como podemos ver, a multiplicação se comporta seguindo as nossas convenções: multiplicar um número $m$ por $n$ é equivalente a somar $n$ vezes o número $m$.
Provando que 1 é o elemento neutro da multiplicação
Não utilizarei indução para essa prova, pois ela é relativamente simples: seja $x$ um número natural. Queremos provar que $ x \cdot 1 = x $. Vamos aplicar a definição:
$$ x \cdot 1 = x \cdot S(0) \\ x \cdot 1 = x + x \cdot 0 \\ x \cdot 1 = x + 0 \\ x \cdot 1 = x $$
Provando a distributiva à esquerda da multiplicação
A distributiva à esquerda da multiplicação é uma propriedade da multiplicação que afirma que $ x \cdot (y + z) = x \cdot y + x \cdot z $. Para provar essa afirmação, iremos utilizar novamente o axioma da indução. Seja $A$ o conjunto:
$$ A = \{ z \in \mathbb{N} : \forall x, y, \in \mathbb{N} (x \cdot (y + z) = x \cdot y + x \cdot z)\} $$
Aplicando os passos da indução na variável $z$:
- Sabemos que 0 pertence ao conjunto $A$, pois: $$ x \cdot (y + 0) = x \cdot y = x \cdot y + x \cdot 0$$
- Hipótese de indução: Vamos supor que para um $z=k$ qualquer, é válido: $$ x \cdot (y + k) = x \cdot y + x \cdot k $$
- Se $k$ pertence ao conjunto $A$, vamos verificar se $S(k)$ também pertence. Note que: $$ x \cdot (y + S(k)) = x \cdot S(y + k) = x + x \cdot (y + k) = x + x \cdot y + x \cdot k \\ = x \cdot y + (x + x \cdot k) = x \cdot y + x \cdot S(k) $$
- Portanto, $S(k)$ pertence ao conjunto $A$. Logo, $x \cdot (y + z) = x \cdot y + x \cdot z$ é válido para todo natural $x$, $y$ e $z$.
Conclusão
Eu gosto muito dos axiomas de Peano porque eles nos permitem a ir num nível de abstração maior da matemática e nos desafia a pensar em como definir conceitos tão abstratos como contagem, adição e número. Espero que eu tenha conseguido ensinar algumas das demonstrações e axiomas que definem estes conceitos tão básicos da matemática.
Caso você tenha se interessado nesse assunto, eu recomendo o livro The Number Systems: Foundations of Algebra and Analysis do Solomon Feferman. Eu estudei os capítulos iniciais desse livro para escrever esse artigo. O livro avança bem mais profundamente em outras provas e chega a definir até números racionais, inteiros e reais.
Uma das diferenças desse post para o livro é que eu considerei o 0 como um número natural. No livro, o autor não trabalha diretamente com o conceito de números naturais e sim com o conceito de inteiros positivos, portanto, ele define alguns conceitos como multiplicação e adição sem utilizar o 0.
Como o post ficou um pouco longo, eu deixei várias propriedades de fora, como a comutativa da multiplicação, associativa da multiplicação e da adição, distributiva à direita da multiplicação etc. Caso tenham interesse, recomendo que tentem provar essas propriedades usando o axioma da indução.
Última modificação em 2025-10-14